Tuesday, November 19, 2019

Céus enevoados

Se pudesses escolher viver ou morrer, o que escolherias?

Há pessoas que escolhem viver nove décadas, é incrível.
Cuidam dos seus corpos, da sua mente, do seu habitat e por ali ficam - a ver o mundo passar, o mundo a mudar, a terra a cair e a vida a ruir.
Só a arte nos pode salvar, só a beleza nos pode ajudar, só o amor é grande para curar.
A beleza das coisas simples, pois claro, esse grande chavão malvado da sociedade.
O que é que interessa isto tudo se não temos a música, essa forma de expressão que os nossos antepassados descobriram e que ajuda tantos de nós a passar a negritude dos dias; a poesia, essa arte maravilhosa de embelezar até a valeta mais podre e sinistra; a arte, esse prolongamento dos membros, das palavras, dos sentimentos e dos berros primitivos; a beleza infindável da natureza, para nos fazer apreciar o mistério que é estar vivo neste planeta; o amor, esse sentimento brutal espalhado por todo o lado, para nos fazer subir a serotonina e a vontade de existir e ser feliz.

“Oh céus, porque criastes tudo tão difícil!
Oh céus, porque nos destes uma consciência?”
Oh céus, que de tão preenchidos me enevoam a mente…

Friday, July 01, 2016

Uma bandeja de drama

De tanto bater, o meu coração parou.
De tanto tossir, a minha costela quebrou.
De tanto vergar, a minha cabeça tombou.
De tanto chorar, a minha sombra desertou.
De tanto sangrar, o meu corpo findou.
De tanto pesar, a história acabou.

Thursday, June 02, 2016

Sangro do nariz

Peguei no filtro e pû-lo na boca.
Peguei na mortalha e aconcheguei-a na palma da minha mão esquerda.
Com alguns dos dedos da minha mão direita abri o saco de tabaco e pousando-o sobre o meu colo consegui ter acesso aos seus finos fios, que desfiz para a cama de papel que jazia na minha mão esquerda.
Para lá, para cá. Em movimentos contínuos e algo descoordenados, consegui formar um tubo cancerígena que depois elevei em direcção aos lábios e lambi.
Lambi de uma ponta à outra orgulhosamente.
Dei o meu melhor, estou certa.
Ouvia as suas unhas a bater no teclado durante este processo todo.
Coloquei o cigarro já feito entre o dedo médio e o anelar, e como que com desprezo estendi-lhe o seu veneno.
Ela estendeu-me os dedos que podia.
Num desprendimento desse olhar de desprezo com a realidade, arrancou-me suavemente o cigarro das mãos e sorveu-o, pousando-o de seguida no cinzeiro.
Ele olhou para mim, mostrando-me as suas mantas cobertas de sangue.
O tubo cancerígena nunca poderia vencer o maior veneno que havia corrompido o seu ser.
Ela.

Thursday, February 18, 2016

A hora da monstra

Estava um frio invernal.
Os copos de vinho vinham-lhe aquecendo as entranhas e o frio da cerveja preparava-se para lhe acalmar a sede. A sede de não se poder continuar a destruir noite adentro.
A noite amarela e fria, com compassos quentes de calor humano e sobre-humano a pairarem sobre a esplanada.
Ao fundo, uma voz. Ao perto, outra.
Ouvia a que estava perto.
Ouvia aquela que lhe falava de aventuras loucas e impossíveis, dignas de filmes de comédias românticas, acompanhantes de luxo com um final honesto e o sumo do que é ser humano.
Ouvia e ria-se. Sorria muito, acenava com a cabeça e opinava.
Ao longe, ouvia a sua voz.
Aquela que a mandava calar, levantar-se da mesa, entornar a cerveja goela abaixo, caminhar até ao Tejo e descê-lo, com pedras da calçada nos bolsos.
Desencorajada pela sua própria essência, rumou a casa.
Lá, estava um calor infernal.

Thursday, November 12, 2015

O dia em que a minha cabeça me obrigou a fazer uma redacção sobre "a noite".

A noite mostra-me as cicatrizes das pessoas.
A noite conta-me a história sobre como lhes apareceram essas cicatrizes.
A noite põe-me numa maca de hospital e leva-me pelos corredores cheios de luzes artificiais, paredes brancas, pessoas chorosas e cheiro a soro, para que eu assista em primeira mão ao nascimento dessas cicatrizes.
A noite mergulha nessas cicatrizes e lê-me poemas conceituados em voz alta, poemas que eu até então desconhecia.
As cicatrizes mergulham na noite e banham-se em água salgada de rostos e de rios.
A noite tira-me tempo ao dia para ler livros e me cultivar, mas conta-me histórias na primeira pessoa e é por isso que eu gosto dela.

Wednesday, March 25, 2015

Aspirações expiradas

No primeiro dia do equinócio da Primavera resolvi descer de terras mouras até ao largo Manuel da Fonseca, bebericar um chá, fumar uns cigarros e escrever na paz do Senhor.
Esqueci-me foi que neste primeiro dia não só brotam os botõezinhos de rosa e não são só as andorinhas que por aí se pavoneiam.
Dou por mim numa sexta-feira perto das 17h parecendo que já são perto das 22h e que a super-lua fez efeito, até porque o pátio está cheio de aves raras e cães a uivar.
Sou um lobo solitário de tecnologia enfiada nos ouvidos, observado pelo octogenário que guarda o pátio tão bem como a comida que tem há vários dias nas bochechas.
Já não existem espaços cheios em Lisboa que estejam vazios de vida.
Ou se calhar foi a vida que renasceu hoje e levou os restos mortais da cidade ao seu próprio entrudo que decorreu na semana passada.
Finda assim mais uma semana e com ela este meu cigarro. 

Friday, March 13, 2015

A minha casa está vazia.


O amor da minha vida faria dezanove anos hoje.
Faz um ano e pouco mais de um mês que me deixou.
E eu não a queria deixar.
Dói tanto que nem as palavras consigo vomitar.
Já as escrevi mas não chegavam.
Não se percebe esta matemática de um maior curto espaço de tempo sem ela ser tão mais gigante do que a vida que viveu a meu lado.
Dava os dias de sol que não gozei, e os dias de chuva em que me queixei.
Dava os dias de loucura e os de insanidade.
Dava as palavras que deitei à rua, as palavras que doei a quem não as aproveitou.
Dava a atenção que entreguei a quem a descurou.
Dava as peles que roí nas horas de ansiedade, as unhas que cortei, as dela e as minhas.
Dava o meu sangue por ela, para que pudesse circular mais um ano, e no ano que vem dava tudo outra vez.
Dava estas lágrimas que deito para encherem o seu corpo de vida, com a mesma vida linda que ela me deu.
Dava tudo, foda-se.
Era a minha desculpa para não querer envelhecer. Agora já não tenho.
Envelheçamos então.
 
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