Thursday, May 19, 2011

a ferida de Sara



Sara era saudosista.
Sara andava sempre nua, e por isso apanhava maleitas. Mal se curava de uma, adoecia logo de outra.
Acontecia muitas vezes ter o bom de uma doença (a febre quente, e os mimos que recebia), e o mau de estar de boa saúde (não se poder queixar, sentindo-se insatisfeita com isso).
Sara não parou de crescer. Crescia e mingava conforme o tempo; conforme os apeteceres do seu corpo; conforme as suas crenças, conforme as palpitações do seu corpo.
Sara amou muito. Também odiou, também ressentiu. Mas como tudo na vida dela, o ódio, os ressentimentos, o rancor, todos eles eram também visitantes passageiros.
Sara tinha sonhos perpétuos. Muitos reais, muitos ficcionais.
Sara era um livro aberto, que só se fechava quando um capítulo era aborrecido, ou o pó não a deixava ler-se.
Sara respirava como um peixe fora de água. Sofregamente mas a um ritmo tremendamente lento. Abria a boca muito devagar e passavam-se meses, e quando a fechava, já cansada, outros tantos haviam passado.
Sara tinha goelas rugosas, lascadas, moldadas pelo tempo, que embora a preservasse de muitas maneiras, não deixava de passar por ela, castigando-a, como o resto dos mortais.
Mas Sara nunca definhava.
Sara era como um vírus.
Sara era o momento em que a língua do felino toca na sua própria pele vezes e vezes sem conta.
Sara estava enferma de tanto beber o suco da vida.
Sara desfazia-se como um copo de açúcar. Quando lhe tocavam desfazia-se em ardor.
Sara pecava e traía.
Sara era hiperactiva.
Sara tinha um coração que batia tão depressa como um pequeno mamífero em apuros, mas que era tão grande como o de um animal de grande porte.
Sara era um animal, racional e irracional. Sentia dor  prazer, e um misto de culpa com ignorância.
Sara nunca estava bem, a sua ferida era enorme.
Sara tinha um tique nervoso. Abria e fechava o porta-moedas incessantemente.
Sara comia as suas próprias crostas, na esperança de ficar melhor, de esquecer o propósito das mesmas. Do porquê de ali se terem instalado.

Sara não era conformista, mas gostava de ser. Ela acreditava que talvez assim, a sua ferida sarasse.

Monday, May 16, 2011

Eu, breu.


"Tantos carros e nenhum me passa por cima."
Estava tão aborrecido que voltou para casa.
Por lá, o tédio continuava a dominar o ar, embora tivesse deixado as janelas todas abertas de forma a arejar a casa.
Esticou-se no sofá.
De barriga para cima, fixava o tecto, na esperança de ser embalado pelo cansaço de tentar manter os olhos abertos o máximo tempo possível sem os piscar.
Há muito tempo que não estava assim tão aborrecido.
Nada o animava, nada fazia o tempo passar mais depressa.
Na verdade, o dia ao invés de avançar, parecia ficar cada vez mais claro.
"Que tédio." - pensou.
Já havia tomado banho duas vezes, assaltado a sua despensa outras tantas.
A rua não o aliciava, as pessoas não o seduziam.
A televisão e o computador só mostravam o sinal de estática, diziam-lhe os olhos dele.
Enfadonhado começou a observar o seu corpo.
Cada cicatriz, cada sinal, cada veia, cada pêlo, cada desnível de carne, tudo era novo para ele.
Nunca antes havia tomado tanto tempo a olhar para o seu simples corpo.
As peles soltas, os pêlos encravados, os pontos negros, as marcas do sol e da velhice, a marca do relógio, a profundidade do seu umbigo..
Aí começou a indagar sobre o seu interior.
Se conseguisse ver o seu interior, talvez viesse a descobrir um novo mundo e por certo que este monstruoso aborrecimento iria acabar, e a noite iria chegar mais depressa.
Mas tal feito não se cria concebível.
Fechava os olhos mas só via um fundo preto. Às vezes umas listas brancas, mas maioritariamente, tudo preto.
Fechar os olhos obviamente que não iria ajudar. Mas talvez com eles abertos..
Tentou espremer a face o mais perto que conseguia para perto da nuca, mas a única coisa que acontecia, era os seus olhos focarem o nariz, e por vezes conseguir ver um pouco a saliência das suas maçãs do rosto.
"Isto assim não está a resultar. E se abrir a boca?"
Não sendo belfo, seria complicado, mas tentou fazê-lo.
Pegando no lábio inferior, começou a puxá-lo para longe da sua cara, mais longe, mais longe, mais longe, até o fazer tão grande que cobriu a cara!
Olhando para baixo viu tudo escuro, tudo preto. Nem listas brancas havia.
"Deve ser isto a que chamam breu".

Monday, May 09, 2011

um dia pego fogo a esta merda toda

Acendi um fósforo, e peguei fogo a tudo.
Começou tudo a arder.
A casa, as folhas, os meus pés, as minhas unhas, o meu cabelo, a minha cama.
A minha cama parecia um poço de sangue gaseificado.
Longas chamas atingiam o tecto e fugiam para consumir o resto do quarto.
E um silêncio brutal.
Um silêncio tão brutal e um ar tão apático de todos os "objectos" animados e inanimados que o mundo inteiro ao saber desta história, passou a colorir em sua mente, a palavra silêncio de côr preta.
Deixou de haver ar, mas também não sufoquei.
Lentamente observei a tridimensionalidade a desfazer-se em cinzas.
Inspirei tão fundo que senti os pulmões a estalarem e o meu corpo a ficar "desorganizado", tornando-se numa carcaça oca, em que só circulava a aragem fresca de tal cenário.
Tremendo alívio!
Foi tão bom.
 
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