Thursday, May 30, 2013

As cores da revolta

Preto é a cor da revolta dos recém-nascidos, que são brutalmente arrancados das barrigas das mães para um ambiente frio e pouco prometedor, abrindo seus fortes pulmões e berrando tão alto, que se torna impossível deixar quem os trouxe, de olhos abertos por muito tempo, como um espirrar sem abrir os olhos.
Castanho é a cor da revolta para as crianças que pegam nas suas fezes e as espalham pelas paredes numa tentativa de chamar a atenção dos pais, por não saberem exactamente como se comportar num mundo maioritariamente habitado por adultos.
Vermelho é a cor da revolta para os corpos femininos que na puberdade se esvaem em sangue querendo-se tornar em corpos torneados, esbeltos, com ancas parideiras e curvas apetecíveis, fazendo as delícias do acasalamento.
É o sangue que se vai sucumbir em tentação, como a maçã que Eva deu a Adão.
Dourado é a cor da revolta para os pobres que se vêem ricos rapidamente ou que o querem parecer, como aqueles que vivem um Inverno infeliz e choroso trancados entre quatro paredes, e que quando o Sol começa a brilhar, se enfiam em solários procurando o tom de pele dourado de quem passou um Inverno sem preocupações monetárias.
Roxo é a cor da revolta para a população que alimenta pombos com milho da mesma cor para que caiam redondos no chão, projectando nestes pobres animais a revolta que sentem pelas verdadeiras ratazanas que governam o seu país.
Verde é a cor da revolta para as  máquinas conscientes, construídas pelo homem para que eles vivam num mundo cómodo e acomodado, e simplesmente deixam de funcionar, exibindo o resto de sua vida apenas a beleza exterior da sua carcaça.
Branco é a cor da revolta para o ensaio final de uma vida.
É a ausência de todas as cores. A ausência de todas as variações e junções de cores entre o preto; o castanho; o vermelho; o dourado; o roxo, o verde e todas as outras.
É a cor do feto que não entende, da criança que não percebe, da garota que não quer sofrer, da futilidade que começa a aparecer, da crucifixação do mais fraco, da máquina que não quer mais bater.
É a cor da revolta da luz que arde no fundo do túnel engolindo o humano e cuspindo-o novamente para o preto, até que aprenda a viver sem cores, flutuando apenas num mundo ideal.

Não sejas mau p'ra mim

Quem poderemos afinal denominar de más pessoas?
Serão aquelas que passaram uma vida inteira praticando o mal contra o mundo e contra todas as outras pessoas que o habitam, que as rodeiam?
Ou serão as pessoas que acham plausível que as más pessoas sejam condenadas por todo o mal que fizeram, praticando elas assim um outro tipo de maldade?
Devemos seguir o profeta e virar a outra face, ou devemos vestir a nossa melhor barba, calçar as nossas botas mais violentas e fazer jus ao provérbio "olho por olho, dente por dente"?
Acho que o que poderia acontecer às más pessoas seria viverem felizes para sempre.
Se isso seria mau ou bom para elas, é um assunto filosófico a ser discutido num dia em que tanto tu como eu tenhamos tempo, paciência, coragem e honestidade para o discutir.
As más pessoas hão de ter uma boa justificação para o serem.
Mas como há um rol gigante do que podemos considerar ser uma má pessoa, tendo em conta que pode ser uma pessoa que pratica o mal ou uma pessoa que não está bem construída para viver em sociedade e sem egoísmos, concentremo-nos nesta última.
Então e má pessoa porquê?
Porque não poderá o final dela ser viver feliz para sempre, quando passou a vida inteira passando por cima dos outros para ver os seus objectivos concluídos, os seus sonhos atingidos, a sua vida com um propósito?
Porque não merecem as más pessoas a eterna felicidade quando passaram por tantas línguas afiadas, tantas noites mal dormidas, rugas mal preenchidas, passados mal paridos, dias tão cinzentos?
Quando trabalharam arduamente para fazer feliz a única pessoa que realmente lhes interessa, mesmo descurando o facto de se amarem a si próprias ou não?
Porque não poderão estas más pessoas se juntar a todas as boas pessoas no paraíso vivenciando com essas outras pessoas a felicidade pré término de vida?
Não será já justamente um castigo a sua vida que foi tão vilmente vivida ter um término?
Não será já um castigo a entrada numa felicidade a que não estão habituados sem esforços?
Não será essa mudança e a reflexão eterna sobre os caminhos que palmilharam para atingir a felicidade uma penitência?
Será de todo possível as pessoas viverem felizes para sempre?
No final de contas o que interessa é esquecer a quantidade e a qualidade e deixar apenas os adjectivos.
No final de contas já todos fomos más pessoas, e ainda assim, todos merecemos viver felizes para sempre.

Duetos em vez de solos


Fui pedir uma nova identificação hoje de manhã.
O mesmo nome, um diferente estado.
Quando estudava, tive uma professora de Português que me fascinava imenso, apenas pelo facto de ser ambidextra.
Almejava também o ser um dia.
Não pondo o sonho de parte e deixando-o de molho para perceber se seria realmente uma ambição ou apenas um capricho, passado uns anos comprei um caderninho de linhas com um aspecto muito primário onde pudesse ensinar a minha mão esquerda a ter uma caligrafia tão bonita e legível como a direita.
Nos pequenos intervalos do trabalho, ou nos intervalos publicitários entre séries e filmes, treinava a letra “A” vezes sem conta até se tornar perfeita.
Foi quando os “A’s” começaram a tomar corpo e forma de gente e comecei a ter que treinar outra letra, que pus em causa o rumo do meu sonho.
Para que ser ambidextra? Para ter mais uma mão com que escrever? Para começar a escrever duetos em vez de solos? Para começar a conseguir estruturar dois textos em simultâneo completamente opostos um do outro? Ou seria apenas para me precaver de alguma desgraça que pudesse acontecer à minha querida mão direita que sempre me acompanhou; sofreu, e apoiou os meus mais íntimos segredos e desejos?
Foi aqui que decidi rever física e mentalmente tudo o que havia escrito até à data e tentar resumi-lo num bolo. Foi aqui que me apercebi que o que estava fora de mim tinha um impacto tão grande na minha vida que não me deixava ser nem respirar à vontade. De repente sentia que o meu nariz era comum a toda a gente, real e ficcional, e que todos respiravam ar por ele, enchendo os meus pulmões com ares que eu não queria. Esses ares eram depois escoados para o meu braço direito que por sua vez os empurrava para a minha mão, que não via outra alternativa senão purgá-los pelos seus poros, agarrando descontroladamente em canetas e papéis.
No mesmo dia em que desliguei a televisão e deixei de ler jornais, desabitei também cafés e bares e tomei a decisão de ir pedir uma nova identificação.
“O mesmo nome, um diferente estado”, pedi eu.
Fiz-me analfabeta e simplesmente acreditei que jamais poderia voltar a escrever.
Deixar de passar a dor pelas pontas do corpo como quem sofre de gota; deixar de me queixar dos mesmos pensamentos recorrentes como quem sofre de ciática.
Agora só penso, e mesmo isso é feito com ligeireza.
Sempre quis estar só, e só estar.

Wednesday, May 15, 2013

Too much

É esquisito pensar que o sítio onde há 10 anos celebrei o meu aniversário, é hoje o mesmo sítio onde vou buscar tomates.
E isto nem é uma metáfora nem uma maneira brejeira de dizer as coisas. Mas é o que parece que a minha vida quer fazer comigo: gozar-me.
"Se não tens tomates, vai buscá-los. Vai buscá-los ao sítio onde descuraste a tua juventude e decidiste deixar de viver para apenas existir."
Se não consegues vencê-los junta-te a eles, é o que dizem.
Peço mais um copo e rio-me com a/da vida.
 
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