Wednesday, November 07, 2012

Castelos de saliva

Olhei para o espelho e vi um panda.
Um panda esbranquiçado de olhos negros.
- Levei dois murros de tédio - disse-me ele, enquanto continuava a escurecer a boca desenhando um sorriso rasgado que pouco jus fazia ao seu estado de espírito.
Nunca tinha visto um panda como este. Aliás, sem ser no Jardim Zoológico, acho que nunca tinha estado tão perto de um panda.
Toquei-lhe nas costas, mas pouca carne havia. Na verdade, as minhas mãos apenas sentiram ossos, que mais me pareciam pedaços de bambu.
Apenas as bochechas eram salientes, pois o coitado era muito magro.
Dei-lhe couves de Bruxelas envolvidas em natas com pimenta preta para comer, mas em três tempos as vomitou.
- Talvez não tenha escolhido a melhor refeição para dar a um panda - pensei eu.
Mas ele não se mostrou muito incomodado. Ao que parece era um movimento natural do seu corpo a que já se tinha habituado.
Limpou a boca, deu um gole numa garrafa de água, e retocou os lábios.
Era um panda bonito, e embora tivesse os olhos visivelmente feridos pelo tédio, conseguia pegar nessas feridas e lambê-las com muita saliva para construir castelos que derrubassem o aborrecimento que emoldurava o espelho onde nos víamos.
Enquanto se pintava e fazia caretas, eu entretinha-me a conversar com ele. Quando dei pelas horas já estava na hora que tinha definido como hora de ir dormir.
Pousei o espelho, lavei-lhe a cara, e juntos sonhámos.

Permanente sobre papel

Estava a matar o tempo com papéis e bonecos quando te vi estendida no chão. Sozinha ali dormias, à espera que o teu amo te viesse buscar. Peguei em ti, descobri o teu manto cinzento e olhei perplexa o teu frágil bico.
Um bico fino, longo, e uma língua preta como a dos Shar-peis.
Exibi-te a todos e guardei-te junto ao meu peito.
Agora és minha.
Róis-me os nós dos dedos mas ainda assim, que prazer me dá ver-te a lamber os papéis com que costumava brincar para matar o tempo.
 
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