Thursday, May 30, 2013

Duetos em vez de solos


Fui pedir uma nova identificação hoje de manhã.
O mesmo nome, um diferente estado.
Quando estudava, tive uma professora de Português que me fascinava imenso, apenas pelo facto de ser ambidextra.
Almejava também o ser um dia.
Não pondo o sonho de parte e deixando-o de molho para perceber se seria realmente uma ambição ou apenas um capricho, passado uns anos comprei um caderninho de linhas com um aspecto muito primário onde pudesse ensinar a minha mão esquerda a ter uma caligrafia tão bonita e legível como a direita.
Nos pequenos intervalos do trabalho, ou nos intervalos publicitários entre séries e filmes, treinava a letra “A” vezes sem conta até se tornar perfeita.
Foi quando os “A’s” começaram a tomar corpo e forma de gente e comecei a ter que treinar outra letra, que pus em causa o rumo do meu sonho.
Para que ser ambidextra? Para ter mais uma mão com que escrever? Para começar a escrever duetos em vez de solos? Para começar a conseguir estruturar dois textos em simultâneo completamente opostos um do outro? Ou seria apenas para me precaver de alguma desgraça que pudesse acontecer à minha querida mão direita que sempre me acompanhou; sofreu, e apoiou os meus mais íntimos segredos e desejos?
Foi aqui que decidi rever física e mentalmente tudo o que havia escrito até à data e tentar resumi-lo num bolo. Foi aqui que me apercebi que o que estava fora de mim tinha um impacto tão grande na minha vida que não me deixava ser nem respirar à vontade. De repente sentia que o meu nariz era comum a toda a gente, real e ficcional, e que todos respiravam ar por ele, enchendo os meus pulmões com ares que eu não queria. Esses ares eram depois escoados para o meu braço direito que por sua vez os empurrava para a minha mão, que não via outra alternativa senão purgá-los pelos seus poros, agarrando descontroladamente em canetas e papéis.
No mesmo dia em que desliguei a televisão e deixei de ler jornais, desabitei também cafés e bares e tomei a decisão de ir pedir uma nova identificação.
“O mesmo nome, um diferente estado”, pedi eu.
Fiz-me analfabeta e simplesmente acreditei que jamais poderia voltar a escrever.
Deixar de passar a dor pelas pontas do corpo como quem sofre de gota; deixar de me queixar dos mesmos pensamentos recorrentes como quem sofre de ciática.
Agora só penso, e mesmo isso é feito com ligeireza.
Sempre quis estar só, e só estar.

1 comment:

Pedro said...

ou seria apenas para renascer !?

 
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