Deixei de pôr açúcar no café.
Descolei as solas dos pés do chão ardente do Inferno, larguei os sorrisos cozidos na face das noites passadas em branco, deixei de lado o copo meio vazio, deixei as preocupações e as indignações das últimas décadas em memórias que o tempo engoliu.
Deixei para trás os sonhos biodegradáveis e a doçura do café.
Caminhei de peito erguido com os braços atados à minha consciência que me elevava a cabeça para o céu e as pernas atadas ao meu ventre que me ligava à terra durante quilómetros até o meu corpo ganhar uma nova forma estática, firme e hirta de quem caminha com confiança.
Passei dias a olhá-lo ao espelho e a confiança começou a ser engolida do interior para o exterior.
Uma luta nunca é fácil, por menos luta que seja.
Uma escolha nunca é fácil, por menos escolha que seja.
Uma memória nunca é fácil de manter ou esquecer, por menos memória que seja.
Ao nosso redor celebram-se aniversários de nascimento, de morte, de relacionamentos amorosos, de viuvez, de mudanças de vida, de tudo um pouco.
Fazem-se tatuagens, piercings, cortam-se cabelos, muda-se de casa, muda-se de nome, muda-se de visual, muda-se de amigos, muda-se o tipo de letra, ouvem-se outras músicas, provam-se novos sabores.
“Este foi o dia em que tudo mudou.”
Acendem-se velas, deitam-se flores, oferecem-se umas, recordam-se outras tantas.
Tatuam-se datas, tatuam-se caras, tatuam-se flores.
Queremos marcar de alguma forma o que nos foi importante, o que nos é importante, e quando foi o dia em que decidimos que queríamos de alguma maneira marcar na nossa pele a importância que isso teve no nosso caminho enquanto pessoas.
E eu decidi deixar de pôr açúcar no café.
Decidi isso, após anos a vir a reduzi-lo.
Agora nem tão pouco lhe ponho açúcar, pois é a única amargura na vida que quero sentir.
A minha pele engole agora todo o açúcar que precisa por outros meios, e isso tatua-se na minha leveza de espírito todos os dias.
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