Sunday, March 16, 2014

Sonhos biodegradáveis e a doçura do café

Deixei de pôr açúcar no café.
Descolei as solas dos pés do chão ardente do Inferno, larguei os sorrisos cozidos na face das noites passadas em branco, deixei de lado o copo meio vazio, deixei as preocupações e as indignações das últimas décadas em memórias que o tempo engoliu.
Deixei para trás os sonhos biodegradáveis e a doçura do café.
Caminhei de peito erguido com os braços atados à minha consciência que me elevava a cabeça para o céu e as pernas atadas ao meu ventre que me ligava à terra durante quilómetros até o meu corpo ganhar uma nova forma estática, firme e hirta de quem caminha com confiança.
Passei dias a olhá-lo ao espelho e a confiança começou a ser engolida do interior para o exterior.
Uma luta nunca é fácil, por menos luta que seja.
Uma escolha nunca é fácil, por menos escolha que seja.
Uma memória nunca é fácil de manter ou esquecer, por menos memória que seja.
Ao nosso redor celebram-se aniversários de nascimento, de morte, de relacionamentos amorosos, de viuvez, de mudanças de vida, de tudo um pouco.
Fazem-se tatuagens, piercings, cortam-se cabelos, muda-se de casa, muda-se de nome, muda-se de visual, muda-se de amigos, muda-se o tipo de letra, ouvem-se outras músicas, provam-se novos sabores.
“Este foi o dia em que tudo mudou.”
Acendem-se velas, deitam-se flores, oferecem-se umas, recordam-se outras tantas.
Tatuam-se datas, tatuam-se caras, tatuam-se flores.
Queremos marcar de alguma forma o que nos foi importante, o que nos é importante, e quando foi o dia em que decidimos que queríamos de alguma maneira marcar na nossa pele a importância que isso teve no nosso caminho enquanto pessoas.
E eu decidi deixar de pôr açúcar no café.
Decidi isso, após anos a vir a reduzi-lo.
Agora nem tão pouco lhe ponho açúcar, pois é a única amargura na vida que quero sentir.
A minha pele engole agora todo o açúcar que precisa por outros meios, e isso tatua-se na minha leveza de espírito todos os dias.

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