Monday, December 02, 2013

Hélder, o rei das palavras

Hoje fui ao dentista de manhã.
A caminho do dentista, faltando ainda uns 5 minutos, resolvi sentar-me num banco no jardim do Príncipe Real e fumar um cigarro.
Sentei-me, enrolei-o, acendi-o e tirei o meu caderno e caneta da mala.
Comecei a escrever umas quantas parvoíces sobre o que via, o que não via, o que me lembrava, os cheiros e os sons.
Até que fui abordada por um homem, e parei de escrever.
Disse-me bom dia e perguntou se me podia declamar um poema que tinha escrito.
Chamava-se Hélder e tinha por volta de uns 50 anos.
Era um sem-abrigo e em vez de arrumar carros como os outros que rodeiam o jardim, vendia poemas. Explicou-me que pedia a amigos para os passar a computador e os imprimir numa casa de fotocópias ali no largo.
Pedia 2 euros por cada poema, e gostava de os declamar.
Declamou-me um primeiro, com muita emoção.
Explicou-o e declamou-me um segundo.
Comprei o primeiro, fui à consulta e prometi-lhe que a seguir ía ter com ele novamente.
Saí da consulta, procurei nos bancos do jardim e lá estava ele.
Quando me viu fez um sorriso inesperado.
"Voltaste!"
Sim, voltei, como tinha prometido.
Disse-me que era a primeira pessoa que lhe tinha comprado um poema fazia já algum tempo. As outras pessoas apenas passavam por ele e diziam que não estavam interessadas.
Já não conseguia declamar mais, estava frio e a voz dele já estava cansada.
Deu-me outro poema a ler, desta vez sobre um turista em Lisboa.
Mais uma vez me fascinou esta personagem com quem me havia cruzado numa Segunda-feira de manhã, perdida no meio do jardim do Príncipe Real entre a feira de antiguidades e o quiosque chique.
Uma antiguidade chique, o Hélder, um sem abrigo com um coração romântico.
Comprei-lhe mais um poema.
Este era sobre a Mona Lisa. Falámos imenso sobre ambos os poemas, ou melhor, falou ele. Eu estava com um sorriso parvo na cara a pensar na quantidade de pessoas bonitas e interessantes que há espalhadas pela cidade sem que nos consigamos aperceber disso.
Despedi-me dele e prometi-lhe que na minha próxima consulta o visitaria. Deixou o contacto no fim das folhas e disse-me que aceitava encomendas de poemas.
Este chama-se "Amoreiras", e segundo o Hélder, é um lembrete para todos os homens sobre a beleza das mulheres, a salvação do casamento e um mote para um crescimento na natalidade, pois já não se vêem grávidas e como chegámos à conclusão: "ou estão todas escondidas em casa durante a gestação, ou não as há".

Amoreiras

"Árvore frondosa
Teu nome evoca Amor
Frutos suculentos, boníssimos.
Das folhas, larvas produzem seda.
Fina, transparente.
Cobres escultural corpo
Contornos sinuosos, sugestivos, excitantes
Mamilos, salientes, intumescidos.
Dieta à base de Amora
Fizeram de ti, símbolo do Amor e Beleza.
Eva e a maçã, foi pecado
Tu mulher, da amora degustaste.
Saciaste desejo
Ignoravas poderoso efeito
Anatómico da Amora
Bela, sensual, sexy.
Homem algum se liberta, atracção exaurida
Força centrípeta, és a raínha.
Seda transparente, leve vaporosa, molda o corpo escultural
Activas testosterona, impossível resistir.
Depositas semente da vida
Ovário acolhedor
Nove meses de gestação
Depois
Dieta à base de Amora
De seda fina, transparente
Cobres teu níveo corpo escultural
Agora que és mãe
Estás na plenitude sexual
Amora põe-te mais quente
Emocional, sexualmente
És uma brasa
Poetas, escultores, pintores
Por ti foram inspirados
Enalteceram, enobreceram, dignificaram
Tua beleza
Comparada de Afrodite
Será que a dieta da Deusa do Amor
Era à base de Amoras?
Tu mulher
Réplica de Afrodite
Hoje estás boa, quente
Nos ovários incubarás
A semente do Homem."

Hélder Couto
Fevereiro 2013

Monday, November 25, 2013

Eu escrevo, se tu desenhares.

Tenho saudades de pequenos momentos da minha infância que não me lembro de ter vivido.
Tenho pena de não poder viver com esta memória de adulto, as experiências de criança.
Tocar em coisas pela primeira vez, ver sítios pela primeira vez, interagir com outro ser humano sem ser balbuciando pela primeira vez, do meu primeiro sonho, da minha primeira tristeza, do meu primeiro adeus.
Há muitas coisas preciosas que as crianças vivem e que nunca, mas nunca, se vão lembrar. Essas memórias ficarão apenas cravadas junto das rugas que irão nascer uns anos mais tarde perto dos lábios e das cavidades oculares.
A inocência, a curta memória e o desprendimento que lhes assiste em tão tenra idade, não lhes dá espaço para sonharem e viverem num “se” que poderia haver no dia, ou momento seguinte.
Fascinar-me-ia poder reviver um dia de praia, enquanto escoltada pelos meus pais. A alegria de correr na areia, de mergulhar nas ondas do mar como se fosse a melhor coisa do mundo (prazeres de que ainda desfruto com a mesma intensidade), e brincar com outras crianças como se nos conhecêssemos há muito tempo.
O que estás a fazer?”
Um castelo que tem uma piscina à frente.”
Posso brincar contigo?”
E sem mais palavras, brincávamos a tarde inteira até que um dos nossos pais nos viria encher a cara de creme protector, pôr um panamá na moleirinha e comunicar-nos que não tarda nos íamos embora que já estava a ficar tarde. Naquele momento a única coisa em que pensávamos era em fazer uma birra daquelas pois não percebíamos o porquê de termos que ir embora, quando estávamos no melhor sítio do mundo, a brincar com a criança mais fixe do mundo, e o amanhã e o depois, eram conceitos que ainda não percebíamos. Daí até começarmos a choradeira era um instante. Depois vinha o outro pai que pegava na outra criança e nós só dizíamos um adeus despreocupado como se apenas nos tivéssemos cruzado na fila dos gelados ao contrário de termos partilhado uma tarde de intimidade infantil.
Depois crescemos.
Crescemos e a nossa inocência vai por água abaixo, os nossos conceitos ganham corpo, e as nossas decisões face às outras crianças têm obrigatoriamente que mudar.
Já quase ninguém se lembra dessas tardes na praia. Já ninguém quer brincar mais a isso. Agora queremos viver descansados e ter a nossa felicidade em ver as nossas crianças a brincar.
Custa-me desprender disto tudo.
Saio para a rua e observo os olhos das outras crianças agora adultas. Brinco com elas, e se alinharem na minha brincadeira, visto logo o meu fato-de-banho e corro com elas até à água.
Se não as encontrar no dia seguinte, agora sim, agarro-me aos “ses”.

Friday, November 08, 2013

Nalgas de gaivota

Estava na praia, deitada à espera do pôr-do-sol de papo para o ar, quando vejo um bando de gaivotas a voarem na minha direcção.
- Se alguma destas cagar em cima de mim, jogo no Euromilhões - disse eu em voz alta.
As pessoas riram-se entredentes.
Eram umas 18 gaivotas.
Sobrevoavam acerca de uns 20 metros de altura de nós.
Ninguém estava a prestar atenção a não ser eu. Estava tudo ocupado nos seus tempos livres, passatempos, hobbies, a jogar jogos no telefone, a ler livros, a ouvir música, a enviar mensagens.
A quinta gaivota abriu bem as nalgas e com um tiro certeiro sujou-me a coxa direita.
Num misto de nojo, espanto e alegria dei um berro que virou todas as cabeças p'ra mim.
Tal qual um bébé recém-nascido imita as expressões faciais dos pais, todos ao meu redor imitaram os meus sentimentos de nojo, espanto e alegria.
Corri para a água neste misto de emoções e mergulhei simultaneamente nas ondas e nos meus pensamentos.
Se ganhasse o primeiro prémio poderia finalmente comprar uma passagem e viajar até ao lago onde as medusas não me podem ferir e apenas ser admiradas, que é exactamente o que elas fazem com os humanos, pois temem-nos.
Saí da água tão depressa para apenas me aperceber que era Sexta-feira e que já passava das 20h00.
A minha última hipótese de jogar teria sido até às 19h00.
Escolhi os primeiros números que me vieram à cabeça e apontei-os num papel. Estrelas incluídas.
Mais tarde, já em casa, obriguei toda a gente a esperar que uma substituta da Marisa Cruz me viesse dizer se eventualmente poderia ter ganho algum prémio.
1, 2, 3 números certos e já toda a gente na sala começava a tremer.
5 números e 2 estrelas depois e o meu melhor enchorrilo de asneiras começava a ser debitado.
Quem não tinha percebido que eu não havia realmente jogado, abanava as cervejas, despejando espuma por cima uns dos outros, com se fosse o champanhe dos pobres.
Hoje em dia, os meus mergulhos já não são tão relaxados como eram.
Mergulhe eu numa ou noutra direcção e já não é só o mar que me banha.
São também as fezes luminosas de uma gaivota querendo viajar comigo.

Friday, October 25, 2013

Abraços líquidos

Podia não ter nada, mas se tivesse a ti, sentir-me-ia completa.
Quando os meus lábios tocam no teu corpo e envolves a minha boca com o teu toque quente, sinto a minha língua a ser amada como se de o órgão ou parte mais bonita do corpo, fosse a que ostento.
Agarras-me nas costas e apertas-me o coração com uma delicadeza suprema que quase me faz gemer em público.
E gemeria, não fossem estes olhos quadrados à minha volta à espera de encontrarem mais um louco neste mundo que lhes possa hipoteticamente justificar a sua existência insana que julgam (mas temem) ser única.
Por esta altura já o meu coração bate mais desordenadamente.
É altura de parar de falar de ti e de te abandonar, despido, junto a estes outros loucos.
É que todo o chá contém um pouco de cafeína e o meu fraco coração não me permite consumir tanta emoção assim.

Latas novas

Peguei nos papelinhos todos que andavam perdidos em bolsos de calças e casacos, arranjei uma lata de feijão vazia e guardei-os todos lá para um dia em que tivesse paciência de os rever e repensar nas palavras que p'ra lá tinha atirado.
Hoje, ao ler alguns, encontrei um que tinha algo escrito que achei por bem colocar neste blog, pois acho que é a sua cara.

"O amor é como o olho do cu. Cada um tem a sua opinião."

Friday, June 21, 2013

Há revolta no cais

Há revolta no meu cais.
Há revolta nas minhas hormonas, há revolta no meu ego.
Eu detesto o ego, e detesto que haja um "meu ego".
Mas o meu ego hoje revoltou-se, e eu sinto-me com hormonas masculinas, daquelas que precisam de se exibir em público.
Sinto-me com hormonas adolescentes, daquelas que precisam de berrar e chorar no pátio da escola.
O mais engraçado é o ego sentir-se ferido por existir, e a única maneira de se conseguir remediar de se sentir ferido e culpado por se sentir e por existir é tornar-se ainda mais evidente.
E aqui vos escrevi eu.
O ego desta miúda que está a beber um chá de camomila e a ver os dedos a soltarem-se por caminhos que não sabe bem tornear.
E curiosamente não é o chá de camomila que a vai deixar mais tranquila, mas sim o que o ego lhe se escreveu.
A mente mente e o ego é somente o que a mente lhe mente.

Thursday, May 30, 2013

As cores da revolta

Preto é a cor da revolta dos recém-nascidos, que são brutalmente arrancados das barrigas das mães para um ambiente frio e pouco prometedor, abrindo seus fortes pulmões e berrando tão alto, que se torna impossível deixar quem os trouxe, de olhos abertos por muito tempo, como um espirrar sem abrir os olhos.
Castanho é a cor da revolta para as crianças que pegam nas suas fezes e as espalham pelas paredes numa tentativa de chamar a atenção dos pais, por não saberem exactamente como se comportar num mundo maioritariamente habitado por adultos.
Vermelho é a cor da revolta para os corpos femininos que na puberdade se esvaem em sangue querendo-se tornar em corpos torneados, esbeltos, com ancas parideiras e curvas apetecíveis, fazendo as delícias do acasalamento.
É o sangue que se vai sucumbir em tentação, como a maçã que Eva deu a Adão.
Dourado é a cor da revolta para os pobres que se vêem ricos rapidamente ou que o querem parecer, como aqueles que vivem um Inverno infeliz e choroso trancados entre quatro paredes, e que quando o Sol começa a brilhar, se enfiam em solários procurando o tom de pele dourado de quem passou um Inverno sem preocupações monetárias.
Roxo é a cor da revolta para a população que alimenta pombos com milho da mesma cor para que caiam redondos no chão, projectando nestes pobres animais a revolta que sentem pelas verdadeiras ratazanas que governam o seu país.
Verde é a cor da revolta para as  máquinas conscientes, construídas pelo homem para que eles vivam num mundo cómodo e acomodado, e simplesmente deixam de funcionar, exibindo o resto de sua vida apenas a beleza exterior da sua carcaça.
Branco é a cor da revolta para o ensaio final de uma vida.
É a ausência de todas as cores. A ausência de todas as variações e junções de cores entre o preto; o castanho; o vermelho; o dourado; o roxo, o verde e todas as outras.
É a cor do feto que não entende, da criança que não percebe, da garota que não quer sofrer, da futilidade que começa a aparecer, da crucifixação do mais fraco, da máquina que não quer mais bater.
É a cor da revolta da luz que arde no fundo do túnel engolindo o humano e cuspindo-o novamente para o preto, até que aprenda a viver sem cores, flutuando apenas num mundo ideal.

Não sejas mau p'ra mim

Quem poderemos afinal denominar de más pessoas?
Serão aquelas que passaram uma vida inteira praticando o mal contra o mundo e contra todas as outras pessoas que o habitam, que as rodeiam?
Ou serão as pessoas que acham plausível que as más pessoas sejam condenadas por todo o mal que fizeram, praticando elas assim um outro tipo de maldade?
Devemos seguir o profeta e virar a outra face, ou devemos vestir a nossa melhor barba, calçar as nossas botas mais violentas e fazer jus ao provérbio "olho por olho, dente por dente"?
Acho que o que poderia acontecer às más pessoas seria viverem felizes para sempre.
Se isso seria mau ou bom para elas, é um assunto filosófico a ser discutido num dia em que tanto tu como eu tenhamos tempo, paciência, coragem e honestidade para o discutir.
As más pessoas hão de ter uma boa justificação para o serem.
Mas como há um rol gigante do que podemos considerar ser uma má pessoa, tendo em conta que pode ser uma pessoa que pratica o mal ou uma pessoa que não está bem construída para viver em sociedade e sem egoísmos, concentremo-nos nesta última.
Então e má pessoa porquê?
Porque não poderá o final dela ser viver feliz para sempre, quando passou a vida inteira passando por cima dos outros para ver os seus objectivos concluídos, os seus sonhos atingidos, a sua vida com um propósito?
Porque não merecem as más pessoas a eterna felicidade quando passaram por tantas línguas afiadas, tantas noites mal dormidas, rugas mal preenchidas, passados mal paridos, dias tão cinzentos?
Quando trabalharam arduamente para fazer feliz a única pessoa que realmente lhes interessa, mesmo descurando o facto de se amarem a si próprias ou não?
Porque não poderão estas más pessoas se juntar a todas as boas pessoas no paraíso vivenciando com essas outras pessoas a felicidade pré término de vida?
Não será já justamente um castigo a sua vida que foi tão vilmente vivida ter um término?
Não será já um castigo a entrada numa felicidade a que não estão habituados sem esforços?
Não será essa mudança e a reflexão eterna sobre os caminhos que palmilharam para atingir a felicidade uma penitência?
Será de todo possível as pessoas viverem felizes para sempre?
No final de contas o que interessa é esquecer a quantidade e a qualidade e deixar apenas os adjectivos.
No final de contas já todos fomos más pessoas, e ainda assim, todos merecemos viver felizes para sempre.

Duetos em vez de solos


Fui pedir uma nova identificação hoje de manhã.
O mesmo nome, um diferente estado.
Quando estudava, tive uma professora de Português que me fascinava imenso, apenas pelo facto de ser ambidextra.
Almejava também o ser um dia.
Não pondo o sonho de parte e deixando-o de molho para perceber se seria realmente uma ambição ou apenas um capricho, passado uns anos comprei um caderninho de linhas com um aspecto muito primário onde pudesse ensinar a minha mão esquerda a ter uma caligrafia tão bonita e legível como a direita.
Nos pequenos intervalos do trabalho, ou nos intervalos publicitários entre séries e filmes, treinava a letra “A” vezes sem conta até se tornar perfeita.
Foi quando os “A’s” começaram a tomar corpo e forma de gente e comecei a ter que treinar outra letra, que pus em causa o rumo do meu sonho.
Para que ser ambidextra? Para ter mais uma mão com que escrever? Para começar a escrever duetos em vez de solos? Para começar a conseguir estruturar dois textos em simultâneo completamente opostos um do outro? Ou seria apenas para me precaver de alguma desgraça que pudesse acontecer à minha querida mão direita que sempre me acompanhou; sofreu, e apoiou os meus mais íntimos segredos e desejos?
Foi aqui que decidi rever física e mentalmente tudo o que havia escrito até à data e tentar resumi-lo num bolo. Foi aqui que me apercebi que o que estava fora de mim tinha um impacto tão grande na minha vida que não me deixava ser nem respirar à vontade. De repente sentia que o meu nariz era comum a toda a gente, real e ficcional, e que todos respiravam ar por ele, enchendo os meus pulmões com ares que eu não queria. Esses ares eram depois escoados para o meu braço direito que por sua vez os empurrava para a minha mão, que não via outra alternativa senão purgá-los pelos seus poros, agarrando descontroladamente em canetas e papéis.
No mesmo dia em que desliguei a televisão e deixei de ler jornais, desabitei também cafés e bares e tomei a decisão de ir pedir uma nova identificação.
“O mesmo nome, um diferente estado”, pedi eu.
Fiz-me analfabeta e simplesmente acreditei que jamais poderia voltar a escrever.
Deixar de passar a dor pelas pontas do corpo como quem sofre de gota; deixar de me queixar dos mesmos pensamentos recorrentes como quem sofre de ciática.
Agora só penso, e mesmo isso é feito com ligeireza.
Sempre quis estar só, e só estar.

Wednesday, May 15, 2013

Too much

É esquisito pensar que o sítio onde há 10 anos celebrei o meu aniversário, é hoje o mesmo sítio onde vou buscar tomates.
E isto nem é uma metáfora nem uma maneira brejeira de dizer as coisas. Mas é o que parece que a minha vida quer fazer comigo: gozar-me.
"Se não tens tomates, vai buscá-los. Vai buscá-los ao sítio onde descuraste a tua juventude e decidiste deixar de viver para apenas existir."
Se não consegues vencê-los junta-te a eles, é o que dizem.
Peço mais um copo e rio-me com a/da vida.

Friday, April 26, 2013

A beleza chora até morrer

A beleza é muitas coisas.
A beleza é icónica, é utópica, é única, é rara, é inconstante.
A beleza é fútil, é mágica, é felicidade, é dor, é vida e morte.
A beleza é um ingrediente que alimenta muitas pessoas, muitas emoções, muitas ideias e sacrifícios.
A beleza é dissecada até ao mais pequeno detalhe da sua existência, é julgada pelo bem e pelo mal, pelo cego e pelo visionário.
A beleza vive num constante limbo que não a deixa somente ser ou algo positivo, ou algo negativo.
A beleza tem que se transformar tal qual um camaleão de forma a se adaptar a todas as situações.
A beleza vive constantemente no meio campo do que é o mau e o bom, o certo e o errado, o perfeito e o imperfeito.
A beleza é usada e abusada por quem menos gosta e mais abomina.
A beleza é um boneco que salta de mãos em mãos, de cabeça em cabeça, de papel em papel.
E o papel da beleza é trazer-nos um sorriso quando o peso da realidade apaga os nossos sonhos.
E é com este peso que ela tem que se apoiar numa balança e pular, pular, pular, até fazer com que o seu peso domine esta máquina imaginada pelo homem.
É este peso que lhe custa.
É este peso que a faz sofrer.
É este peso que faz com que as suas lágrimas caiam em vão, como chuva que cai no chão, sem nenhum propósito ou usufruto.
À beleza doem-lhe os ossos porque são magros e consistentes e têm um peso em cima deles muito difícil de suportar.
Dói-lhe a cabeça porque nunca sabe em que grupo se há de encaixar, a quem há de agradar ou fazer feliz.
A beleza está em todo o lado.
E quando consegue atingir a paz de haver um par de olhos que não a consegue ver, aparece outro que a tira lá do fundo e a ergue num pedestal.
A beleza não suporta a dimensão com que é venerada e esconde-se em todos os cantos, acabando inevitavelmente, contra o seu querer, por ser descoberta.
A beleza sonha em ser um objecto, um animal irracional, pois odeia ser uma palavra, um conceito, com um poder estonteante.
A beleza é como uma fénix que renasce das cinzas e se torna imortal mesmo quando o mundo acaba e explode em partículas estreladas que embelezam o céu.

Tuesday, April 09, 2013

A vida nunca tem um sentido singular, mas sim plural.

Há quem diga que a vida começa às segundas-feiras.
"Hoje é que é. Hoje vou começar tudo do princípio, organizar-me e fazer tudo o que quero."
Há quem diga que hoje é o primeiro dia do resto das suas vidas, mas isso para um ávido fã de Sérgio Godinho torna-se penoso, pois só passando noites em claro, é que o primeiro dia do resto das suas vidas se torna maior que as ditas vinte e quatro horas.
Há a vida socialmente aceitável em que amamos a nossa família e somos criados junto dela, tenha ela a forma que tiver, e a vida em que anseamos por ter uma nova família. Depois há uma nova vida junta dessa nova família que temos.
Há também quem comece uma nova vida a partir do momento em que vê nascer a sua primeira cria, ou vê morrer o seu primeiro progenitor, um grande amigo ou um grande amor.
Há ainda quem sofra uma grande mudança de visual ou de localização e diga que vai mudar de vida.
Há também doenças que nos mudam a vida, vivências, experiências, dissabores.
Há a vida dentro do trabalho perante o olhar curioso de quem só ali nos conhece e nos tenta julgar fora do mesmo, e há aqueles rasgos de vida que mostramos aos mesmos nas breves pausas que tomamos dentro do horário de trabalho, que lhes dá uma percepção sobre o que poderá ser a nossa vida embora seja uma achega muito pequena e provavelmente imparcial do que é na realidade a nossa vida.
Depois há a vida que se sonha em ter, há a vida que se vive nos sonhos e ainda a vida que se realmente tem. Esta última divide-se ainda em mais duas vidas: uma é a vida como a vemos, como a sentimos, como a percebemos, como a queremos; a outra é como mostramos como a vemos, como a sentimos, como a percebemos, como a queremos. E estas duas últimas são sempre muito difíceis de explicar e de viver, pois as nossas vozes interiores têm um dialecto que para todos os outros comuns mortais é considerado como extraterrestre e por vezes até por nós próprios.
Posto isto, torna-se difícil dentro de todas as vidas que temos, escolher uma para documentar.
Principalmente, quando se é "jovem" (insira aqui a designação para esta palavra que melhor lhe convir) e maior parte da nossa vida ter sido maioritariamente vivida em sonhos. Até porque tomar uma decisão é algo que pode demorar uma vida.

Sunday, January 06, 2013

CCLD

Está comprovado que o consumo excessivo de leite tem praticamente os mesmos efeitos que a morfina e que uma paixão arrebatadora tem praticamente os mesmos efeitos que a cocaína.
Posto isto, um grupo de dependentes de elementos supostamente não tóxicos mas que os viciam, juntaram-se e formaram o clube dos consumidores de leite derramado.
Há vários tipos de consumidores de leite derramado.
Existem os sôfregos, que o consomem com uma palhinha, tentando sorver todas as gotas possíveis, para poderem sentir a nata colada ao céu da boca, de onde querem que ela nunca mais saia.
Há os que preferem lambê-lo directamente do chão, dando assim liberdade a suas línguas de poderem sofrer cortes que serão eternos, fortes como cortes de folhas de papel.
Há os que o deixam secar, para que se transforme em placas de leite azedo, que mais tarde poderão lamber como chupa-chupas sem validade.
Neste grupo encontramos poetas, artistas, saudosistas, recalcados e traumatizados.

Depois existem os intolerantes à lactose.
Os intolerantes à lactose e descendentes de felinos não se incomodam com o leite derramado.
Os intolerantes porque o leite lhes cai mal, mesmo que apenas sorvam pequenas partes, e os descendentes de felinos porque mesmo que o leite esteja caído no chão, não os impossibilita de o consumir, pois a sua língua áspera que também os ajuda a sarar as feridas que o mesmo metaforicamente lhes possa causar, não tem barreira alguma em sorver líquidos que toquem o chão, a realidade.
Estes embora se tentem integrar no grupo com o intuito de conhecer os verdadeiros consumidores de leite derramado e de os tentar chamar à razão, são imediatamente banidos à entrada.
Estes olham o leite, cheiram o leite, molham o dedo e provam o leite.
Cai-lhes mal, pegam na esfregona, limpam o leite, lavam o balde e a esfregona.
Neste grupo encontramos poetas, artistas, saudosistas mas realistas.

O clube é exclusivo, encoraja-se a saída, mas não se encoraja a entrada.
 
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